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segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Cerejas, Agroflorestas e Nheminhotỹ Moĩ Porã

 Não exatamente nessa ordem, mas as atividades entre 14 e 15 de outubro permitiram essas práticas e consequentes reflexões contidas no título. Voltando um pouco no tempo, entre 2013 e 2015 foram plantadas muitas árvores nativas e frutíferas exóticas para formar as 'agroflorestas'. Muito marcante pra mim foi que, só em 2015 conseguimos, equipe de trabalho da Outro Olhar e grupos nas Tekoa, entendermos mutuamente o que efetivamente era agrofloresta. A partir da expressão de um participante durante um curso 'ah, então agrofloresta é isso, fazer o que os antigos já faziam, agora que entendi'; o que era novo, não era novo, era revisitar uma prática antiga da Agricultura Guarani; e para nós os jurua, o entendimento de que não eram simples agroflorestas, eram Agroflorestas Guarani, significando que, na técnica da agrofloresta jurua se aplica a técnica e cosmologia Guarani.

Foto: Ara Ju

Em 2021, essas agroflorestas estão nas Tekoa, em diferentes níveis, com diferentes cuidados. Novas variedades, replantios sendo feitos (com mudas nativas a partir da doação do Horto Faxinal do Céu - Copel) e uma deliciosa surpresa foi que, esse período é o período das cerejas estarem maduras. E para nossa alegria, três variedades de cereja nativa estão produzindo, sem recorrer aos nomes técnicos, vamos lá: cereja gordinha, cereja redondinha e cereja gordinha amarela. Lindo de ver, gostoso de comer. Alegria das crianças e dos adultos. Frutos do trabalho e dedicação de cada um que ajudou nessa construção.

Se em 2015 houve essa 'revelação', na sexta feira chuvosa do dia 15 de outubro, arrisco dizer que tivemos outra 'revelação/entendimento'. Há muito falamos em sementes crioulas, depois optamos por chamar de tradicionais ou sagradas; então nada mais justo que aproximar a agricultura Guarani da concepção dos Guardiões de Sementes. Tantas conversas, atividades e, novamente, o chegar ao entendimento do que o jurua quer dizer na sua língua e o que o Guarani entende na sua.

Foto: Ara Ju

Parece tão simples 'Guardião de Sementes', pois, na concepção da expressão jurua talvez; na concepção Guarani havia uma grande diferença, quase um abismo que as palavras criavam. Tento explicar: o entendimento da palavra 'guardião' para o Guarani, não faz sentido para 'sementes'; guardar é um ato isolado, é um ato de 'retirar'; quase antagonizando com cuidado, reprodução. Então, quando se diz Guardião de Sementes, o que vem a mente é tão estranho que, por mais que a ideia fosse explicada já algumas vezes, ela não conseguia ser realizada.

E foi em uma conversa no entorno do fogo, que aquecia na manhã chuvosa, que o entendimento se fez, junto ao grupo Aty Miri da Tekoa Palmeirinha do Iguaçu. Para o Guarani sentido faz ser Nheminhoty Moĩ Porã, que é cuidar das plantas/sementes para que nunca acabem; não é guardar, é manter ela viva; garantir seus ciclos; garantir que a sagrada vida não se perca nela; manter saudável para que sempre possa germinar, de novo, de novo e de novo.

Então que as agroflorestas Guarani possam ser apoio aos Nheminhotỹ Moĩ Porã!


Por: Ara Ju (Sandra König)

Tekoa - aldeia, lugar de vida
Jurua - pessoa não indígena
Nheminhotỹ Moĩ Porã - cuidador e mantenedor das sementes (para que sigam vivas)[interpretação livre]
Foto: Jaqueline

Foto: João Ricardo

Foto: João Ricardo

Foto: Juliana Takua

Foto: Juliana Takua

Foto: Juliana Takua

Foto: Juliana Takua


quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Ka'a Nhemongarai tekoa Monjolinho

 O território é mais do que um lugar para se ter uma casa e explorar a terra para sustentar a vida e o luxo de quem dela se diz 'dono'. Território é lugar de vida, de saúde, de estabelecer moradia, de cuidar da terra, para dela colher bons frutos, é tekoa.

A partir desse entendimento, de construir e reconstruir essas relações surge a tekoa Monjolinho, desmembrada da tekoa Tapixi, deseja trilhar seu 'tape porã' [bom caminho]; e uma das primeiras necessidades é ter sua Opy'i [cara cerimonial Guarani].

Feita com as mãos dos moradores da tekoa, madeiras cortadas na floresta, paredes de pau a pique, roliços outros lascados com machado; telhado provisório; o mais importante porém já acontece desde quando nem as paredes estavam colocadas: as noites de canto!

Opy'i em pé é hora de fazer a Ka'a Nhemongarai [cerimônia de bênção e batismo com erva mate].


Nuvens no céu, depois de algumas semanas de sol e terra seca, a chuva é esperada. E ela chega forte já na sexta feira. A noite na Opy'i é de expectativa de se será possível colher erva mate e sapecar na manhã seguinte.

Durante a noite e madrugada, muita chuva, alguns raios e um pouco de vento. Amanhece o dia com chuvica, as nuvens pesadas dão lugar a outras que quase dão passagem ao sol, o Xamoi [líder espiritual] se apressa com os xondaro kuery [jovens do gênero masculino] para colher e sapecar a erva mate, deixando os ramalhetes prontos, é só aguardar o meio dia para o inicio/sequência da cerimônia.

O céu fecha outra vez, chuva forte, o telhado provisório resiste. A comunidade se reúne, o fogo aquece a água do chimarrão e também os pés que molharam para chegarem ali.

O Xamoi entoa seu canto e o ritual inicia. Cada xondaro pega seu ramalhete, faz a caminhada circular sob o canto do Xamoi que continua forte. Após, depositam, um a um, seu ramalhete no altar junto com suas intenções, nomes de quem está presente e para quem está ausente também. O Xamoi e os xondaro kuery abençoam os ramalhetes com a fumaça dos petygua [cachimbo Guarani] na sagrada comunicação com as divindades.


Essa parte do cerimonial está encerrada, pessoas se sentam em volta do fogo, seguem algumas conversas, risadas, aos poucos cada um vai pra sua casa, porque quando anoitecer, será hora de voltar para a Opy'i e continuar o cerimonial.

Entre rápidos períodos de chuva mais amena transcorreu a tarde, noite chega, chuva que segue e aos poucos a Opy'i volta a se encher de gente. Ao chamado do Xamoi os xondaro e xondaria kuery se posicionam e entoam os lindos mbora'i [cantos sagrados Guarani]. As horas passam, atendimentos são feitos e, com seu canto característico o Xamoi  em consonância com as divindades revela os nomes dos espíritos que estão habitando os corpos. [traduzindo: revela o nome espiritual das crianças, o batismo Guarani dos xondaro].


Amanhã a cerimônia irá continuar. Agora é momento para repor as forças, uma refeição é servida, ali mesmo na Opy'i.

O domingo amanhece, ainda com chuva, durante a noite trovoadas e relâmpagos, a Xaryi explica que é bom que Wera e Tupã se manifestem assim, eles vem para limpar as coisas ruins [divindade do raio e do trovão, respectivamente].

Hoje o protagonismo é das kunha (mulheres) xondaria e xaryi kuery se reúnem na Opy'i,  providenciam a lenha para sapecar/secar os ramalhetes de erva que passaram a noite na Opy'i. Enquanto algumas cuidam do fogo, outras já socam no pilão as folhas mais secas, e essa ação é repetida várias vezes até os ramalhetes de erva mate praticamente desaparecerem. E no recipiente agora descansa a erva mate socada. Cada Xaryi e Xondaria se aproxima, prepara seu 'pote' com a erva mate e ao toque do Xamoi inicia a caminhada para consagrar, lentamente cada 'pote' é depositado sobre o altar com o nome de cada kunha e suas intenções que são recebidas pelo Xamoi. Este as abençoa em seguida as Xaryi e Xondaria kuery.


Mbora'i
são entoados, Xamoi orienta para os que precisam ter seu nome revelado ou sentem que precisam de uma benção especial se assentam mais a frente no banquinho posicionado para tal. Segue um canto solitário do Xamoi, depois passa a ser acompanhado pelos xondaro, xondaria e xaryi kuery; as vezes, a revelação vem rápido, outras demora mais. Nesta tarde, uma das meninas recebeu o nome de Ara Yvoty, em minha livre tradução como ‘flor do dia’, nome que eu, particularmente acho lindo.


Nos comentários e reflexões que seguiram os agradecimentos foram para todos e de todos. Para a comunidade pela participação, por levantar a Opy’i de forma tão rápida e pelo viver de cada noite; pela aproximação das famílias a partir da vivência espiritual, pela dedicação de cada um ao coletivo; para os Xamoi e Xaryi kuery pela tempo e partilha dos conhecimentos e pelas ‘nhe’e porã’ boas palavras. Para as divindades por nos permitirem viver e realizar o que realizamos. Nessa toada, encerrou-se a cerimônia e as pessoas seguem seus caminhos mais fortalecidas e abençoadas.

Aguyjevete!


Relato de Vivência por Ara Ju


Tempo Novo: Ara Pyau


Primavera, ano novo, sim em setembro, quando as plantas brotam depois dos meses de inverno, o sol já esquenta a terra, é tempo de preparar o roçado e lançar as sementes no solo. A vida se renova, começa o ano novo Guarani, a transformação do Ara Yma [tempo velho] em Ara Pyau [tempo novo].

Francisca Jaxuka Benites junto com outras mulheres passaram o ano de 2020 e 2021 até agosto, durante a pandemia da Covid-19 cuidando da área de cultivo comum do grupo: a agrofloresta.

A lida com as plantas, o cuidado com a terra despertaram para o chamado do cuidado maior, do cuidado tradicional. Depois de muitos anos sem realizar a Nhanhoty va’e Nhemongarai [cerimônia da bênção das sementes e plantas], no dia 20 de setembro de 2021 foi realizada novamente por decisão dessas mulheres de raízes, de cultura e de vida.


O Xamoi Honório Benites [líder espiritual] conduziu a cerimônia, as sementes e mudas são trazidas ao espaço sagrado pelas mãos dos que irão cultivá-las, permanecem ali e recebem as bênçãos a partir das orações do Xamoi, da Xaryi e de todos os participantes [xaryi são as mulheres líderes espirituais, anciãs]. Durante a noite os mbora’i [cantos sagrados Guarani] embalam as mentes e as almas, seguidos das palavras do Xamoi e das atividades da Opy'i: cantos, curas, reflexões [opy’i: casa cerimonial Guarani]. 

Quando o sol aparece no horizonte na manhã seguinte, as sementes e plantas juntamente com os plantadores e plantadoras estão abençoados e seguem seu destino de gerar vida, frutos e alimentos.